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CALIGRAFIA DE MARINA

CALIGRAFIA DE MARINA

Gostoso como um abraço - Marina Martins

Não sei se você já teve a oportunidade de cumprimentar algum estrangeiro que não fosse de origem latina. Certamente é uma situação culturalmente carregada, em que, o brasileiro abre os braços a espera de acolher o estrangeiro - mesmo que o esteja vendo pela primeira vez - enquanto este, estende uma mão firme que busca evitar mergulhar no abraço que lhe é oferecido. E nisso vão alguns segundos de negociação cultural, até que o cumprimento chegue num acordo. Claro que não podemos afirmar que todo brasileiro seja assim afetivo, mas, como um todo, essa é uma característica nossa. E o que dizer agora então, que não apenas não estamos cumprimentando desconhecidos, como nem mesmo nossos amigos? Encontramos alguém que gostamos, que naturalmente daríamos um abraço e não sabemos mais o que fazer. Quase chegamos a por as mãos no bolso, para ter certeza que ficarão lá e não cairão na tentação de envolver o outro. E fica como se fosse aquele vácuo, a estranheza de estar faltando algo.

A força de um abraço é tão potente que há inclusive terapias que o utilizem como meio de cura. Pensa quando passamos muito tempo sem ver alguém que gostamos, que outra saída temos para demonstrar afeto que não um longo e caloroso abraço? Não recordo bem, mas acredito que seja uma música que diz que existe o abraço casa, aquele abraço em que você pode morar dentro, em que se sente abrigado, acolhido. E a troca no abraço é mútua. No abraço verdadeiro, peito com peito, você não apenas dá como recebe amor. 

Mas agora, isolados e temendo uns aos outros - sim, porque tememos o vírus, mas não sabemos com quem ele está - esta prática de abraçar, para quem é consciente, se tornou impensável. E qual o estrago emocional que isso pode causar? O quão sozinhos nos sentimos? E essa mudança de hábitos, já há mais de 4 meses, talvez torne-se algo que fique conosco. Será que, quando tudo isso passar, deixaremos de abraçar tanto? Sei que certamente eu vou pensar duas vezes antes de abraçar alguém que eu ainda não conheça. Talvez a COVID acabe tornando nossos cumprimentos menos latinos. Guardaremos nossos abraços para pessoas de nosso convívio, pessoas íntimas. O que muitos podem dizer que faz mais sentido, inclusive. 

E essa é uma mudança que pode vir com outras que também se fizeram necessárias. Sorrirmos mais com os olhos, por exemplo. Ou demonstrar afeto apenas com um sorriso. Ou com as mãos unidas na frente do corpo, em forma de namastê. Acho esse gesto tão belo, tão respeitoso, que gostaria de mantê-lo mesmo quando já puder distribuir abraços por aí. E claro, temos também as palavras. Agora que estamos sem o toque, temos que acreditar mais na sinceridade das palavras ditas ou escritas. Mas será que elas expressam o que o corpo não consegue sentir? Já mais de uma vez na quarentena me dei um abraço. Abraço carinhoso, acolhedor, de "vai ficar tudo bem". E passei para mim todo amor que sentia, todo amor guardado para quando tudo isso passar. Taí outra prática que talvez valha manter mesmo pós-pandemia.


Marina Martins é formada em letras português, inglês e literaturas e atua como professora de línguas no Instituto Federal Catarinense, em São Francisco do Sul. Sua incursão em uma escrita sistemática iniciou-se junto com as transformações da pandemia: criou o blog de crônicas vaguidaoespecífica.blogspot.com.br. Afinal, a literatura não poderia ser melhor maneira de transformar o real.



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